“Eu
não imaginei que seria assim.”
Uma
chuva fina banha a pequena cidade esquecida pelo mundo e por qualquer
pessoa que já passou por ela.
Há
um mercadinho localizado na esquina de uma rua lamacenta. Em frente
uma mulher, abrigando a si e ao filho – ainda de colo - de baixo de
um guarda-chuva da Barbie, espera o marido que está dentro do
estabelecimento tentando comprar fiado mais uma vez.
“Eu
nunca quis que fosse assim.” Ela pensa.
No
seu colo o filho desfruta do sono que apenas bebês desfrutam. A
cidade, graças a chuva fina, também está adormecida, estando
apenas alguns poucos azarados, bandidos e trabalhadores acordados.
“Eu
nunca quis que fosse assim.” Ela pensa.
O
filho em seu colo faz um grunhido, aquele tipo que só bebês fazem e
isso a faz esboçar um sorriso em seu rosto pálido.
As
coisas tomaram um rumo totalmente diferente do que ela pensou que
seria a vida dela.
Embalada
por mais um grunhido do filho, ela fecha os olhos e imagina, mais uma
vez, como seria.
Naquela
manhã eles acordariam felizes e mais apaixonados do que nunca. Seja
pelo filho que tinham ou por um acordar ao lado do outro, todo santo
dia. Ela gostava de acordar antes dele apenas para vê-lo fazer os
grunhidos que ele fazia enquanto estava dormindo ao seu lado, aqueles
grunhidos que apenas ele fazia.
E
quando ele despertasse, ambos iam rir, porque ele sempre achou esse
hábito dela engraçado. Depois ele diria: “Te amo” e ela
responderia: “Também te amo.”
Ele
prepararia o café enquanto ela amamentava o filho, pois eles
haveriam planejado como dividir as tarefas de casa quando o filho
tivesse nascido. Tomariam café juntos e conversariam sobre o que
fariam durante o dia, ele falando sobre suas vendas externas e como
estava sentindo o cheiro de promoção, ela sobre os quadros que
estava pintando, inclusive um sendo encomenda de uma pessoa
importante da cidade vizinha.
A
tarde ele ligaria para ela.
Perguntaria
sobre o filho, perguntaria sobre a pintura, e pediria para que ela
falasse mais e mais sobre o que estava pintando, tudo isso porque
adorava ouvir sua voz. E ela saberia disso, pois ele já havia
contado.
A
noite os dois ou melhor, três, jantariam juntos.
Ela
perguntaria sobre o dia dele e ele diria tudo para ela, o que fez,
por onde andou, o que vendeu e sobre como ficou feliz quando foi
chamado na sala do chefe e recebeu a promoção. O que ela faria?
Ora, iria pôr My Girl do The Temptations – a música preferida
dela e seria a dele também – e os dois dançariam ali mesmo, na
cozinha.
Quando
o filho começasse a chorar, ele o pegaria no colo e simularia
movimentos de dança. A simulação de dança se estenderia para a
sala. Ela riria da cena, mas logo em seguida tomaria o filho dos
braços do pai e diria que era sua vez de dançar com o belo
rapazinho.
E
eles dançariam, se revezando, até que o filho pegasse no sono.
Ela
que iria pôr o filho no berço enquanto ele cuidava de limpar a
pequena bagunça na cozinha e, quando retornasse para a cozinha,
daria de cara com o marido pondo outra música para tocar, a música
que ela também adorava ouvir e ele adorava vê-la ouvindo.
Dancing
Queen do Abba.
“Dança
para mim, meu amor?” Ele pediria.
E
ela dançaria. E antes mesmo de dançar um minuto da música ambos
estariam se amando no chão da sala. Seria uma festa a dois, regada a
muito amor, felicidade, prazer e mais amor. Sempre lembrariam daquela
noite. Sempre.
-
Vamos.
Ela
acaba sendo tirada do sonho que nunca viveria. Era o marido.
-
Então? – ela pergunta.
-
Porra nenhuma. Ele disse que eu devo aquela conta passada, se tivesse
quitado ainda dava pra me vender pelo menos ovo.
A
chuva ficou ainda mais fina. Em silêncio os dois caminham pela rua
lamacenta. Ela, por carregar o filho no colo, anda mais devagar que o
marido, que está alguns passos à frente e não parece nem um pouco
preocupado em olhar para trás para saber como a esposa e o filho
estão.
O
bebê principia um choro, mas ela faz o que apenas as mães conseguem
fazer para acalmar um filho e com isso, mais uma vez, ela esboça um
sorriso.
Quando
volta a olhar para frente percebe os passos que distanciam a do
marido. Poucos. Mas que mostram o abismo que há entre seus corações.